Entrevista à revista AU (1.º e abril de 1997)

 

Geógrafo e professor da USP, várias vezes premiado no Brasil e no Exterior, Milton Santos não acredita que a globalização tenha sucesso por muito tempo em "países urbanos" e de grandes exstensões territoriais, como é o caso do Brasil. Para ele, embora as empresas globais tenham sob seu comando as duas grandes violências do final do século, a do dinheiro e a da informação, elas enfrentarão as legiões de excluídos pelo sistema, que hoje se refugiam nos grandes centros urbanos. E é a partir da vida urbana, de um debate estabelecido na cidade, que, espera o professor, surgirá um novo Estado, mais forte e independente. Nascido em Brotas do Macaúba, interior da Bahia, em 1926, Santos foi distinguido em 1994, na França, com o Vautrin Lud, considerado o Nobel da Geografia. Nesta entrevista, concedida a ÉRIDE MOURA e MÁRIO PINI no final de 1996, Santos fala sobre o processo de globalização, que não se limita ao âmbito da economia, mas tenta mudar geografias, reorganizar territórios e influenciar a própria vida cultural dos povos.


AU - Territórios nacionais, regiões, blocos econômicos e globalização. Que geografia pode ser pensada como dominante neste final de século?
Milton Santos - A globalização contribui para mudar tudo, principalmente as geografias. Ela altera a maneira de ver o mundo, permite uma outra forma de realizar a economia, apresenta novos tipos de intercâmbio' traz mudanças mesmo nos aspectos culturais da vida dos povos e, sobretudo, reorganiza o território mundial. Na realidade, essa reorganização é múltipla, pois se apresenta sob várias formas ao mesmo tempo. Cria blocos econômicos que podem ter um aspecto regional quando formados por países vizinhos, estabelece relações entre pontos dispersos do planeta e de cuja união pragmática obtém o essencial para a vida econômica. E isso constitui também um novo recorte geográfico. Mas os estados nacionais continuam existindo e são fundamentais para todo o resto, porque a globalização não se faz sem eles. Na verdade, há várias geografias superpostas, todas elas tendo um centro regulador que toma o papel do Estado. O municipal, que tem ainda muita força, o regional que, dependendo do continente, pode ter maior ou menor importância (é muito importante na Europa, mas ainda pouco nas Américas do Sul e do Norte), e o Estado nacional, que continua com grande força. Há também os governos supra-nacionais, representados pelas grandes instituições que controlam o dinheiro, o comércio, os transportes, fiscalizam as comunicações etc ...

AU - E também determinam as normas...
MS - Sim, claro, a globalização traz, necessariamente, a multiplicação de normas, que é uma marca deste momento da história. As grandes empresas não funcionam sem normas. A globalização se realiza porque as normas se dão segundo níveis geográficos os mais diversos e são cada vez mais privadas. Entre as geografias dominantes, poderíamos incluir a das empresas, que chamamos de topologia das empresas, ou seja, o conjunto de pontos que elas constróem no seu processo de captação de produtos, de venda de mercadorias, e que constituem uma geografia própria, a partir dos seus interesses. E que vai competir com as outras geografias. Seria a geografia do mercado global a dominante? Esse mercado é restrito, só interessa a um pequeno número de empresas, de pessoas, mas tem um grande peso no comércio. Aparentemente ele não necessita do território, porque se vale dos pontos aos quais já nos referimos, que servem de apoio para a conquista do território e, sobretudo, para a competição com as empresas territoriais, cujo êxito depende de suas relações com o território e com o estado nacional. As empresas globais valem-se das duas grandes violências deste final de século - a do dinheiro e a da informação - para desafiar os Estados, conquistá-los e atrelá-los às suas próprias lógicas. Esse é um dos grandes problemas atuais, sobretudo para os países que mantém um papel de comando na ordem mundial. Não é o caso do Brasil
, que é um país comandado na vida internacional. Todas as empresas e todas as pessoas que são territoriais, que é a massa da população, ficam à mercê dos desígnios de empresas que não têm outro objetivo senão o mercado global. E esse, por sua vez, não tem finalidade. Para que serve o mercado global? Ninguém nos explicou. Só para retomar aquela antiga distinção marxista, a geografia determinante é a das grandes empresas, é a dos governos globais. Mas a dominante é a de todos os outros, dos que esperam por uma reforma do Estado que leve em conta não a globalização que está sendo feita, mas a esmagadora maioria dos atores, que estamos chamando de atores territoriais...


AU - A nacionalidade é ou será transcultural?
MS - Eu creio que se ela for apenas cultural estará ameaçada. Quando Marx falou das três instâncias da sociedade - política, cultural e econômica - esqueceu de incluir a geográfica, territorial. Hoje, essas instâncias estão misturadas, já não se sabe ao certo onde termina uma e começa a outra. O consumo é um dado da economia ou da cultura? Não se sabe muito bem. Se a nacionalidade for considerada como algo apenas cultural, estará ameaçada, porque há uma relação de causa e efeito entre todos os elementos que formam a sociedade contemporânea. Nos assusta a idéia da cultura ser apresentada como algo isolado em uma economia orientada apenas para a globalização...

AU - Tudo o que não é globalizado ou globalizável torna-se residual...
MS - Sim e isso é um risco para a cultura. O mundo não se construirá se formos todos iguais. Ele existe porque somos diferentes e discutimos. A construção do mundo resulta do debate, que pode até ser mudo, não precisa ser obrigatoriamente ostensivo ou ruidoso. Mas certamente ele se faz através da cultura. A economia tem uma enorme atração pelo pragmático e, por conseguinte, pela homogeneização. A cultura é a garantia da diversidade. É possível que durante algum tempo nós tenhamos a tendência de apagar esses traços culturais próprios de cada sociedade territorial, mas logo vamos ter uma revanche da cultura, e isso por uma razão muito simples: a maioria das pessoas, das empresas, das instituições é territorial. Então, a desculturização tipo Coca-Cola ou seja lá o que for, tem os seus dias contados. O mundo vai voltar a ser o que sempre foi, um mosaico, e muito mais rico do que antes.

AU - E nesse contexto, como ficam as noções de Nação e Estado?
MS - Nação e Estado são palavras que atravessaram os séculos, e como todas as palavras, elas vão mudando com o tempo... Agora é preciso encontrar um novo tipo de Estado. O problema é que, por enquanto, a maioria dos países renunciou à busca de um novo Estado e aceita ser tributário do mercado global... Ao que parece, as populações dos países em processo de globalização estão se refugiando nas cidades. Busca-se desmantelar a Nação através, entre outras coisas, do desmantelo da idéia de solidariedade. E acho que isso é uma das coisas mais graves que está ocorrendo no Brasil atualmente. A idéia de solidariedade entre classes, grupos de idades, raças ou regiões não está sendo bem tratada pelo atual governo, e isso representa uma ameaça à integridade do país. Como reação, a Nação se refugia na cidade, lugar tradicionalmente privilegiado pela comunicação múltipla entre as pessoas. E são os pobres os que melhor se comunicam, porque não utilizam intermediações neutras em suas relações. A pobreza expulsa do campo, vai estabelecer na cidade um novo tipo de debate.

AU - E um debate certamente rico, porque envolve uma gama imensa de pessoas de diversas origens ...
MS - São pessoas da América Latina, da África, da Ásia, da Europa e do Brasil em particular. Uma gama bem mais numerosa que a da Europa, e é por isso que as nossas cidades são culturalmente muito mais dinâmicas. Quanto mais diferentes são as pessoas, mas elas contróem sob o ponto de vista das idéias. E a cidade obriga à solidariedade, não no sentido ético, mas no senti
do da sobrevivência - você não faz seu pão, não dirige ônibus... Todos nós temos milhares de necessidades que são providas por outros na cidade. É essa solidariedade que querem suprimir, uma solidariedade que se dá na produção da vida diária, mas que também pode surgir no domínio cultural. Acho que a novidade dessa cultura popular que está se instalando com grande força nas cidades é que, ao invés de ficar subordinada à cultura de massa, como se imaginava, a cultura de massa é que está subordinada à popular, utilizando seus meios e tomando o seu lugar. Nos últimos 20 anos, quantos estádios foram construídos, quantas casas de dança e de música foram abertas? E tudo isso é geração de cultura, produção de uma outra coisa que uma parte da sociologia não vê porque só está preocupada com a violência. Eu creio que essa produção da Nação dentro da cidade - que é paralela à produção da cultura - vai levar à produção de um outro país, a despeito da globalização. E vai levar também à produção de um outro tipo de estado nacional. A cidade vai pedir regras, e o Estado é a única entidade capaz de produzí-las e fazê-las respeitar. Acreditamos que esse novo Estado, que será construído a partir da vida urbana, não ficará a serviço das grandes empresas como o atual.

AU - A urbanização do país é um ponto positivo para a globalização?
MS - Não, pelo contrário. A globalização tem pressa porque sabe - os globalizadores sabem - que países como o Brasil não a aceitam, sobretudo porque são urbanos. Os países de grandes territórios são muito diversificados e as respostas são variadas. E como são países urbanizados, com cidades populosas, há sempre muita gente desgostosa por não poder participar do processo. Não acreditamos que essa situação perdure por muito tempo. Na Rússia não funciona . É ilusão imaginar que a globalização vá conquistar a China. E o Brasil é ainda mais forte do que esses outros países porque se constituiu a partir de gente vinda de todas as partes. Acho que essa formação dará uma força muito grande ao país, se bem que por enquanto ela ainda não está suficientemente canalisada...

AU - A globalização seria uma nova face do velho colonialismo?
MS - Da forma como está hoje, sim, porque quer impor a áreas muito grandes, a imensas populações, um modo único de vida...

AU - Só que bem aceita, pelo menos no caso brasileiro ...
MS - Sim, por causa das duas violências que já citamos, a do dinheiro e a da informação. O governo brasileiro parece ignorar que há uma nação brasileira. E vamos pagar caro por isso. Nenhum país europeu aceita a globalização sem grandes discussões, sem críticas, debates, ajustes. Os intelectuais discutem e reagem ainda hoje à União Européia. Nem intelectuais nós temos mais no Brasil. O governo FHC seduziu ou silenciou os poucos que tínhamos. Não há mais crítica, e nenhum país sobrevive sem o exercício da crítica...

AU - Na sua opinião, a tendência de crescimento metropolitano deve continuar?
MS - No que se refere aos problemas metropolitanos, nós temos movimentos paradoxais mas complementares. Ao lado do crescimento metropolitano, verificamos uma tendência, já forte, de desmetropolização. E isso ocorre, primeiro pelo fato de que muitas das cidades médias brasileiras estão se tornando também metrópoles. Segundo, porque as grandes cidades têm um crescimento menor e algumas delas estão mandando gente para fora. No caso de São Paulo, há indícios de que há muita gente saindo. O problema é que, com a pobreza, o único lugar razoável para se viver são os grandes centros urbanos, que oferecem possibilidades de trabalho ao longo de todo o ano. E por outro lado, a demanda de qualidade do trabalhador tende a ser menor na grande cidade do que no interior.

AU - Essa tendência de concentração urbana também é válida para regiões como a Amazônia?
MS - A Amazônia possivelmente será povoada sobretudo nas cidades, porque a agricultura moderna encontrará uma forma de expulsar as outras atividades. E é ce
rtamente a cidade que vai atrair esse contingente de trabalhadores rurais. O campo moderno prescinde de pouca gente, como é o caso aliás do Mato Grosso do Sul, de Goiás, dos Estados do Sul e Sudeste.

AU - Como o senhor vê os atuais movimentos pela Reforma Agrária ?
MS - Os Sem-Terra parece agir como se tivessem recebido a procuração do resto da Nação. O Brasil é um país que protesta pouco, reclama pouco, discute pouco, então os sem-terra tornaram-se simpáticos mesmo aos que discordam deles, porque estão no nosso lugar, protestando contra a violência do processo de mudança que está se dando no país. Agora, o exame da questão agrária mostra que a terra é ainda uma maneira de segurar parte da população e oferecer possibilidade de trabalho. Outra aspecto, é que não se pode discutir uma mesma Reforma Agrária para o Sul, Sudeste, Norte ou Nordeste do país. Mas, sobretudo, a Reforma Agrária não pode ser discutida sob o único ângulo da produção. Nós hoje sabemos que produzir só não tem a menor significação, é preciso garantir a circulação dos produtos. Na realidade, quem comanda atualmente a produção é a circulação. Então, a discussão tem de passar por aí. Não é o fato de ser proprietário que vai alterar muito a posição do sujeito dentro da vida econômica e social. E a esquerda, por sua vez, não deveria tratar a Reforma Agrária como um cavalo de batalha, é preciso analisar os vários aspectos da questão. Mas as esquerdas brasileiras sempre tiveram dificuldade de fazer análise...

AU - Que crises podem estar ainda, silenciosamente, se preparando para entrar em cena nos próximos anos?
MS - Eu nunca fui militante da causa negra, mas vejo uma terrível crise no Brasil com relação não só à causa negra, mas à causa de todas as outras minorias, inclusive das minorias territoriais, que são as regiões empobrecidas como o Nordeste, ou incapazes de comando, como a Amazônia. E tem também a questão do território brasileiro, que está desarticulado. E quando falo de território me refiro à população, distribuída pelo campo e pelas cidades. As políticas subalternas à chamada globalização desorganiza a vida das pessoas. Mas já se vê brotar em vários pontos os sinais de descontentamento. A agricultura marca sua insatisfação em protestos nas cidades. Tem qualquer coisa aí se gestando e que no fundo tem um papel positivo. Começa defendendo seus próprios interesses, como o "meu trigo, a minha maçã", mas depois as pessoas vão compreender que há algo maior, que só é possível encontrar a solução a partir de uma articulação. Essa é a segunda etapa. Há bloqueios, é claro, e um deles é o de não se ter projetos nacionais. As crises aparecem hoje separadas mas logo desembocarão em um estuário comum. O governo brasileiro atual não aceita discutir nada, nem admite o debate...

AU - E as forças capazes de debater estão desarticuladas...
MS - E qual é o intelectual sério que vai aceitar entrar em um desses partidos? Qual o partido que tem um projeto nacional? Nenhum deles tem. O (Eduardo) Suplicy, que é um político inteiramente preocupado com esses problemas, tinha captado a questão da renda mínima. Mas não é só isso. Um partido tem que ter mais, é preciso ter um projeto. A ausência dos políticos em relação à realidade nacional e a preocupação puramente eleitoral criam um grande fosso...

AU - Dentro de um processo tão forte como o da globalização, o senhor nos aponta que o processo nacional tem sua gênese na cidade. A resposta será esse processo nacional? O senhor já não acredita em ideologias, de esquerda ou de direita?
MS - Acredito sim, só que a esquerda tem que se renovar. O que seria a esquerda? O arauto do progresso humano. Mas nas condições do mundo atual, com a riqueza das técnicas, o que será esse progresso humano? É uma questão de tempo. A direita também diz que quer o progresso, mas só que lentamente. E o progresso vai muito rápido...

AU - É possível se atribuir as possibilidades da esquerda à existência ainda da pobreza? Ou a esquerd
a não tem mais chances?
MS - Acho que a esquerda tem chance porque a classe média está fazendo agora a experiência da escassez. No caso do Brasil, a classe média sempre teve a experiência da abundância, ela não conhece a linguagem da pobreza. Os partidos de esquerda têm um discurso elaborado por cabeças de classe média, que não vestem a camisa da pobreza. A pobreza é apenas um grito que aparece no discurso de classe média. Hoje, até o discurso do PT já é de classe média, não é mais de pobreza. Mas a classe média continua sendo capaz de difundir idéias - ainda que não seja capaz de formulá-las... Nos anos de abundâcia às custas dos pobres, ela adquiriu apartamentos financiados com recursos do FGTS, comprou seus automóveis, fez suas viagens... Veio o Real, e como ela fez sua educação em torno de coisas e não de valores, tem ainda a possibilidade de realizar seus objetivos... Mas isso está se esgotando por conta da escassez. De repente, já não pode pagar colégio particular para o filho, que tem de ir para a escola pública, o que ela acha humilhante... Sob o ponto de vista político, isso pode até ajudar a criar uma consciência ...

AU - E a retomada da idéia de planejamento, tem a ver também com a criação de uma nova consciência?
MS - A respeito dessa questão, nós precisamos de uma geração inteiramente nova para o planejamento. No planejamento territorial leva-se em conta apenas coisas, como se a cidade fosse feita de coisas. O planejador tem de ser um pouco filósofo ou então aceitar ser datilógrafo dos filósofos. Precisa ter uma capacidade de abrangência muito grande. Não dá mais para ser planejador com uma formação restrita, equivocada de antes. Se os nossos planejadores já não tinham condições , agora com a globalização têm muito menos.

AU - É que as origens dos problemas são múltiplas...
MS - Exato. Essa junção de fatores de dimensões diversas, a rapidez das mudanças, essa relação universal que há em todos os lugares ... Ou a pessoa está preparada para absorver o novo ou ela simplesmente vai fazer coisas pontuais, será apenas uma espécie de datilógrafa...

Frases:

"Busca-se desmantelar a Nação através, entre outras coisas, do desmantelo da idéia de solidariedade. E acho que isso é uma das coisas mais graves que está ocorrendo no Brasil atualmente. A idéia de solidariedade entre classes, grupos de idades, raças ou regiões não está sendo bem tratada pelo atual governo, e isso representa uma ameaça à integridade do país."

"Nem intelectuais nós temos mais no Brasil. O governo FHC seduziu ou silenciou os poucos que tínhamos."

"Os Sem-Terra parece agir como se tivessem recebido a procuração do resto da Nação. O Brasil é um país que protesta pouco, reclama pouco, discute pouco, então os sem-terra tornaram-se simpáticos mesmo aos que discordam deles, porque estão no nosso lugar, protestando contra a violência do processo de mudança que está se dando no país."


Imprimir   Email