A AMÉRICA LATINA ENTRE DOIS SÉCULOS: Modelos Técnicos e Modelos Educativos

*Milton Santos

De todas as épocas vividas pela humanidade, nenhuma mereceu tão grande profusão de denominações. Essas denominações às vezes se opõem e frequentemente são contraditórias, pois cada uma delas é significativa de um aspecto da nossa era. O mundo jamais conheceu um período histórico tão rico de fatos e tão múltiplo em sentidos.  

A aceleração conhecida pela história nos últimos decênios após a Segunda Guerra Mundial é uma das causas dessa vertigem. (Santos, 1994)

Uma das conseqüências dessa aceleração é a enorme dificuldade para entender o mundo (G. Debord, 1992). Essa dificuldade é agravada pelo fato de que a nossa época está sendo capaz de produzir com antecedência, e também com grande força e precisão, as idéias que devem nortear a produção das coisas, o caminho dos homens e a produção de outras idéias. De tal maneira que o qualificativo de era da inteligência atribuído a este fim de século tem toda procedência. Trata-se, sem dúvida, de uma era da inteligência, mas cuja produção todavia nem sempre é fundada no interesse mais geral.

Essa é a causa do grande desnorteio em que vivem Nações, grupos, setores da sociedade, pessoa. Daí a dificuldade em saber ao certo o que fazer. Isso é grave em todos os aspectos da vida e assume gravidade ainda maior no domínio da educação.

Toda sociedade busca evoluir preservando a sua identidade, isto é, guardando os valores que a caracterizam e distinguem. A memória coletiva guardiã dessa herança, é uma das bases de construção do futuro. Essa herança tanto é transmitida informalmente como o é mediante os canais formais da escola, da mídia, etc. Por isso, toda sociedade considera como fundamental um tratamento adequado à questão da educação.

Mas a civilização é marcada por um processo, que no início era lento, e hoje se tornou galopante, de desvalorização do saber alheio. O mundo todo é convocado a formas semelhantes de saber (o próprio processo de homogeneização inerente ao sistema capitalista). De tal maneira o que hoje significa dizer que tal ou tal país está culturalmente atrasado? Somos atrasados ou apenas o nosso sistema educativo não se encontra de acordo com os objetivos fixados para um certo tipo de globalização?

O processo de educação atual no mundo é duplamente polarizado. Pois de um lado há uma divisão exarcebada do trabalho, que exige saberes específicos para fazeres especializados. E de outro lado, essa exacerbação da divisão do trabalho, essa pulverização e fragmentação dos saberes, exige uma atitude oposta, absolutamente necessária e complementar, que é o conhecimento do mundo, sem o que há formação do cidadão, nem indivíduo completo. Hoje, viver plenamente o mundo se tornou dependente da necessidade de filosofar, num sentido simples e profundo, a todos impondo a necessidade de indagar o que estamos fazendo, porque e para que o fazemos.

Daí ser imperioso não esquecer que uma coisa é o mundo, outra são as visões do mundo de que dispomos num lado momento. O mundo é formado de coisas naturais e artificiais, de homens e das relações entre os homens, entre os homens e as coisas, entre as coisas. Essas relações são o resultado da ação humana enquadrada por normas.

Essas coisas, esses homens, essas relações, existem por si mesmo, isto é, têm uma existência material autônoma que é a base da sua identidade, mas essas coisas, esses homens e essas relações podem ser vistos da mais diversas maneiras. Daí a contradição possível entre o mundo e as visões do mundo. As visões do mundo são interpretações das coisas, dos homens e das relações mantidas entre eles. Essas interpretações se referem à estrutura, isto é, às proporções em que as coisas se dão e às relações que mantêm entre si, como, também, dizem respeito às interpretações do funcionamento dessas estruturas.

Mas, também, as visões do mundo terminam por ser sugestões do que fazer. Em outras palavras, as visões do mundo não apenas buscam retratar uma realidade. Elas acabam por influir sobre a maneira como as novas realidades vão ser construídas. É ai que o processo educativo, seja formal, seja informal, tem um papel fundamental.

Ora, voltando ao que dissemos no início, nas condições vigentes é árduo o encontro da linha correta de ensinar e aprender, já que a fabricação das idéias e, mesmo das ideologias, num mundo dominado pelo consumo, tornou-se algo que é uma parte fundamental do próprio processo de produção. Não apenas da produção econômica e material, mas também da produção imaterial e não econômica. A tecnociência está presente em toda parte, mesmo dentro de cada um de nós.

Na realidade, uma das características da produção no período atual é exatamente o fato de que ela é precedida pela produção de idéias. Como a produção neste mundo da competitividade feroz tem como meta terminal a busca quase cega do maior lucro a todo custo, essa lógica subordina todas as demais.

Para afiançar a superioridade da nossa época em relação às anteriores, costuma-se repetir que tudo hoje é feito na base da ciência e da técnica. O que não se diz suficientemente é que cada vez mais a ciência se torna subordinada à técnica. Como a técnica utilizada para dar resposta ao afã de lucro, a ciência obedece a essa mesma regra. Nesse caso, a busca feita pela ciência é uma busca predeterminada e limitada. A ciência é levada a abandonar os caminhos que conduziram a um número maior de descobertas e a descobertas mais úteis a toda a humanidade, para limitar-se a aqueles achados que, de imediato, interessam ao mercado.

É nesse sentido que se pode dizer que a cadeia causal é invertida no atual processo de pesquisa e de construção do saber, porque partimos não da causa para o efeito, mas do efeito desejado para trás, na busca de maior eficácia e lucro, e não propriamente da verdade. É o drama da atividade cientifica no fim do século XX.

Ao mesmo tempo em que as condições da vida social no planeta estão dando cada vez maior espaço a uma demanda de ciência aplicada, reduz-se o campo das reflexões abrangentes, e o que se faz é frequentemente feito sem crítica. E este é um fenômeno mundial. Aliás, a mundialização aparece como uma espécie de justificativa para a validade deste tipo de comportamento, agravado com a mitificação da tecnologia.

Meditar sobre essa tragédia é a primeira tarefa a ser feita em todos os níveis de educação e em todos os lugares do mundo.

Se isso é um dado para o mundo como um todo, esta verdade geral se apresenta segundo aspectos próprios em cada parte do mundo. Nós sabemos que o mundo evolui incessantemente para se tornar outra vez mundo, mas nesse processo, suas partes se tornam cada vez mais singulares. É dessa forma que a América Latina ganha peculiaridade ainda maior neste fim de século, se a comparamos com outros continentes. Tal peculiaridade vem de sua história passada e das condições que se instalam na história presente.

Em relação com o resto do Terceiro Mundo, a América Latina se caracteriza por ser um lugar onde a europeização foi precoce.

A era das grandes navegações, paralelamente à expansão do capitalismo mrcantil, levou os europeus a se espalhar pelo resto do globo conhecido ou recentemente descoberto. Mas é na América Latina que a forma dessa presença é mais profunda e complexa, graça aos modelos geográficos adotados.

Em outros continentes foi de modo geral uma europeização superficial, já que a atividade central era um comércio de coisas e de homens, que até não buscava alterar profundamente a estrutura do viver. Já na América Latina, tanto a agricultura quanto a mineração exigiram uma nova relação com a natureza, criando uma geografia nova, impondo novas formas de organização do território, mas também da sociedade, da economia. Tal organização era diferente de tudo o que existia antes, tanto na terra de acolhimento, como nos continentes de origem dos novos habitantes, europeus e africanos. Essa europeização precoce fez com que a América Latina começasse a criar uma sociedade múltipla, misturada, complexa, uma terra nova.

Um outro dado importante para entender o continente Latino Americano é que a europeização – que na realidade é também africanização para a maior parte dos países da América Latina – se dá com o início do processo capitalista e de sua internacionalização. A chegada de europeus e africanos é marcada pelas relações própria do sistema capitalista, o que inclui a sua força dinâmica manifestada através de vagas expansionistas. Assim, essa terra nova vai contar com um elemento dinâmico produtor de mudanças mais numerosas e mais rápidas do que nos países de origem dos novos moradores, trazendo assim uma vocação ao movimento que até hoje caracteriza a América Latina.

Mas há um terceiro elemento importante. É que essa europeização da América Latina é praticamente latina, que dizer que a similitude de origem, o parentesco (étnico, cultural, lingüístico) dos povoadores hegemônicos tem um papel extremamente importante como fermento ou semente de unidade do continente.

Ainda que politicamente o continente fosse primeiro dividido em duas grandes porções (o império português e o império espanhol), e que depois o império espanhol se houvesse subdividido em numerosos países, o fermento da unidade se havia criado. É verdade que somente nos últimos decênios o estamos descobrindo de forma mais consistente, mas essa descoberta tardia que ocorre hoje já se encontrava latente.

Aí temos o que distingue a América Latina dos outros continentes do Terceiro Mundo, com a produção de várias segundas naturezas ao mesmo tempo, cada uma delas fecundando a outra, de forma que a história se dá através de processo dinâmicos, sucessivos e fortes.

Talvez por isso, por essa forma pela qual se constitui a sociedade, a economia e o território, este continente aparece com uma vocação de abertura que nos outros não se pode encontra, com a mesma amplitude. Para isso contribui também o papel colonizador da religião católica, como vetor da modernidade européia, como elemento de criação de um ethos plástico às necessidades do capitalismo, como veículo de homogeneização, mediante o ensino de uma linguagem comum, de comportamentos e de crenças comuns. Enquanto na África e na Ásia as religiões constituíam pólos de resistência a tudo que não era geográfico ou local, a presença atuante e o processo de sedução dos indígenas pelas missões católicas consolidaram aqui o processo de abertura.

Essa abertura também tem vantagens e desvantagens. A grande vantagem de um continente como a América Latina é que, como vimos, os dinamismos são muito grandes, fortes e renovados. Ao longo da sua história, novos dinamismos substituem, com freqüência, antigos dinamismos. Isso gera um princípio de não acomodação, uma aceitação do dinâmico que é também um convite a rever posições. Esta abertura também o é para novas concepções e novas interpretações. Se o esquecimento é um dado importante no processo do conhecimento, por impedir a cristalização do conceito anterior envelhecido, essa é uma vantagem da América Latina.

Ademais, o fato também da América Latina ter uma acumulação secular de experiência que inclui, sob um aspecto local, enraizado, a experiência européia, permite também uma crítica autêntica da experiência européia. E, os últimos três séculos marcam para este continente a produção de um entendimento próprio que é, também, entendimento do mundo, de parte das elites latino-americanas. Esse entendimento do mundo não é uma recusa do mundo, nem uma aceitação inerte, mas um entendimento crítico do mundo.

Do lado das desvantagens, o que mais avulta é a própria modernidade européia. Porque a modernidade vem sendo vendida, desde a sua primeira instalação, como um convite a reproduzir o modelo europeu. E isso acaba sendo desvantajoso, na medida em que o modelo europeu utilizado maciçamente sem emendas pode, em princípio, ser bom para a Europa, mas não o é obrigatoriamente para outros.

Ora, a América Latina vive entre esses dois pólos. Ela se desenvolve e evolui entre essas duas circunstância.

O peso destas contradições é visível em todos os setores da vida do continente, seja na maneira como estrutura-se a economia, organiza-se o Estado, elabora-se o direito, instituem-se os traços formais da cultura, define-se a educação e elabora-se o conhecimento. Pode-se dizer que sempre vivemos entre esses dois pólos, o da abertura cega e o da vontade de afirmação autônoma.

Segundo as disciplinas, a influência é maior ou menor deste ou daquele pólo. As disciplinas técnicas são quase que praticamente rendidas a esse saber externo. E o grau de dependência ou de rendição se amplia com a amplificação da importância da técnica na vida de nossos povos. Quem sabe, por isso, as próprias idéias filosóficas produzidas na América Latina, tendem de alguma forma, a reproduzir o que vem da Europa, e depois dos Estados Unidos. Isso não que dizer que não tenha havido criação filosófica própria na América Latina.

De um modo geral, entretanto, certa áreas se mostram mais rebeldes. Citaríamos, em primeiro lugar talvez, a própria geografia, pois esta trabalha com realidades criadas a partir do meio, que, sendo concreto, exerce um papel de controle na produção intelectual. Mas também a sociologia latino-americana produziu idéias latino-americanas. E a economia, ao mesmo até os anos setenta, era  marcada pela criatividade, que era uma criatividade latino-americana, da qual a escola da CEPAL é apenas um aspecto. Dizemos isto assim porque, paralelamente, houve uma escola Venezuelana, Argentina, Mexicana, Brasileira, e não propriamente Cepalina, mas igualmente latino-americana.

Em resumo, a própria forma como se constituiu o que poderíamos genericamente chamar de formação Social Latino Americana é responsável pela produção de um saber Latino-americano mais ou menos autêntico, mais ou menos autônomo, mais ou menos próprio, e, por conseguinte, mais ou menos enfeudado ao saber alheio.

Aí estão, em grandes linhas, as bases mais gerais de um projeto afirmativo, tendente à reconstrução do saber latino-americano, com vistas à transição para o século XXI.

Que caminho perseguir, nessa encruzilhada dos tempos? Este fim de século, em função do que agora vivemos, abriga a repensar o conteúdo das humanidades. Acreditamos que estas teriam que se renovar, inspirando-se, forçosamente, na questão da técnica, reconhecendo a polaridade existente entre, de um lado, o fenômeno técnico (a Técnica) como globalidade e, de outro lado, as técnicas como parcialidade, como exercícios práticos autônomos da economia, da política, da cultura. Uma coisa é o fenômeno técnico, em outras palavras, a Técnica. Outra coisa são as técnicas.

Quando falamos em técnicas no plural, estamos nos referindo a formas de agir ligadas a fins particulares, específicos, considerados como se fossem separados da vivência social global. Por exemplo, a técnica de produzir sapatos, a técnica de conduzir um trem, a técnica de fazer um sorvete, a técnica de nadar, da administração de um imóvel...

Todas essas técnicas existem e parecem ser autônomas, na medida em que cada um delas tem suas próprias regras, suas próprias limitações, seus resultados próprios. Mas cada sociedade utiliza de forma particular essas técnicas, aparentemente isoladas e autônomas, combinando-as na forma que considera adequada. Isso que dizer que o exercício de cada técnica se subordina ao exercício de cada outra técnica, mas todas se subordinam ao conjunto do ser social, em seu presente, em seu projeto.

É nesse sentido que se pode falar do Fenômeno Técnico, que é realmente, hoje, o centro da explicação das formas de ser de cada sociedade e dentro de cada sociedade, pois a forma de utilização das técnicas presente é diversa em função dos grupos, das classes, dos níveis de instrução, das crenças e das circunstâncias individuais. Isto é, a realidade da técnica muda de lugar para lugar e dentro de cada lugar se revela em função da apropriação diferencial que é feita pelos membros da respectiva sociedade. De fato, a sociedade modifica o valor original das técnicas ao mesmo tempo em que é modificada pela sua existência.

Por isso, é necessário, de um lado, entender as técnicas tomadas isoladamente como autorizações para fazer isto ou aquilo e, de outro lado, entender o conjunto de técnicas funcionando como conteúdo e continente da sociedade. Podemos grosseiramente dizer que dessa forma estamos enfrentando, ao mesmo tempo, a questão técnica da técnica e a questão filosófica da técnica.

No mundo atual, o conhecimento desses dois aspectos é indispensável. Se nos limitamos ao aspecto puramente filosófico, podemos correr o risco de não saber como efetuar as combinações técnicas consideradas importantes na construção do futuro, em cada continente, em cada país, em cada região, em cada lugar. Mas se não temos uma noção dos conjuntos, tão pouco podemos comandar o futuro, por não saber para onde nos levará o uso combinado de técnicas que parecem particulares.

Os problemas ligados à técnica encontram, hoje, uma nova vertente, na medida em que pelas técnicas também se constroem as ideologia. Por exemplo, as técnicas da imagem são um desses instrumentos de projeção ideológica e, por conseguinte, de produção de uma realidade virtual que exige uma interpretação, sob pena de a tomarmos como um dado real e indiscutível.

A questão da educação pode ser abordada em todos os lugares, segundo diversos parâmetros e modos de percepção. Mas num continente aberto como a América Latina, o fenômeno técnico ganha enorme relevo na produção do conhecimento, porque atravessa todos os aspectos da vida. O seu lado prático aponta para as tarefas do cotidiano imediato, base material da vida. O seu lado filosófico tem que ver com as transformações possíveis e aponta para a construção do futuro. Cada país, a partir desses dois pólos de interesse, construirá ao mesmo tempo o modelo de nação desejado e o modelo de educação necessário.

BIBLIOGRAFIA

DEBORD, Guy
1993 Commentaires sur la Societé du Spectacle, Gallimard, Paris 

SANTOS, Milton 
1993 “A Aceleração Contemporânea: Tempo Mundo e Espaço Mundo”. In:M. Santos et 
         Alli, Fim do Século e Globalização. HUCITEC, São Paulo, (2ª edição).


*Professor do Departamento de Geografia da USP e da UFBA. Doutor Honoris Causa das Universidades de Toulouse, Buenos Aires, Madrid e Federal da Bahia. Desafios da Educação no Século XXI: Integração Regional, Ciência e Tecnologia.  Brasília: ABMES Editora. 1995


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