BRASÍLIA EM MILTON SANTOS: registro metodológico1

 

Aldo Paviani 
Professor Titular do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB)

Introdução

Um geógrafo do mundo, como Milton Santos, tem presença em muitos pontos do planeta, seja fisicamente, quando, por demandas acadêmicas, foi convidado para atividades docentes no exterior ou por desígnios obscuros do regime autoritário que lhe impôs um exílio, nos anos 60/70.

Mas o geógrafo do mundo está em toda parte por sua alentada obra e vigor intelectual. Raríssimos geógrafos preenchem todas estas características como Milton Santos. A obra organizada em sua homenagem, por certo, mostrará uma síntese do pensador presente em todos os quadrantes do planeta, sendo um dos poucos geógrafos brasileiros com marcante presença no Brasil e no exterior. 

Neste ensaio, cabe dar um sumariado (e talvez incompleto) testemunho da presença de Milton Santos em Brasília sob três vertentes: a primeira, em que ele, direta ou indiretamente, trata da Capital brasileira em suas obras, artigos, conferências, etc.; a segunda, com sua presença física colaborando, com sua experiência nos organismos federais (como subchefe da Casa Civil do Governo Jânio Quadros; Ministério da Educação: Comissão da SESU para a revitalização dos Cursos de Geografia; Ministério do Interior: debate na CNPU para delinear uma Política Urbana). Nesta vertente, destaca-se sua marcante presença em eventos como na Semana de Geografia, na UnB, em 16 de outubro de 1980; participação ativa do Seminário Nacional sobre Planejamento Urbano e Regional, em 16 de junho de 1993 e conferência no 1.° Seminário sobre “As Humanidades no Limiar do Século XXI, em 19 de junho de 1996, quando tratou das “Humanidades no Período Técnico-Científico e Informacional. Nestes eventos ofereceu aportes, sendo referido por isto por geógrafos da atualidade, em seus trabalhos sobre Brasília.; uma terceira vertente, inspiradora, quando Milton Santos, por suas publicações, tem sido referido por outros autores, geógrafos ou não, em suas pesquisas apresentadas em congressos ou divulgadas em artigos ou livros. Sobre estas três vertentes fundamentamos este ensaio com a esperança de ter “garimpado” as melhores referências como explicitado, não descartando possíveis e involuntárias omissões.

Assim, pretende-se trazer à memória da historiografia da Geografia brasileira estas contribuições concretas do pensamento de Milton Santos sobre o urbano de Brasília e do Brasil e a contrapartida dos que, seguindo o ensinamento básico deste geógrafo, o aplicam à urbanização da Capital federal e sua periferia metropolitana.

Brasília na obra de Milton Santos

Uma das mais remotas referências escritas em que Milton Santos aborda a urbanização em Brasília encontra-se no livro A Cidade nos Países Subdesenvolvidos2. Toda a Terceira Parte da obra trata de “Brasília e o Subdesenvolvimento Brasileiro”3 , tendo sido apresentada e debatida no Colóquio sobre as Capitais da América Latina, realizado entre 24 e 27 de fevereiro de 1964, na Universidade de Toulouse.

Este trabalho é uma síntese de como Milton Santos assumiu e/ou teorizou sobre a Capital federal, em seus primórdios, seja como cidade ainda em construção, seja em seus aspectos macro, de cidade de “um país subdesenvolvido”. Muitas de suas reflexões possuem atualidade, outras demarcam historicamente o que era Brasília em começos dos anos 60. Outras reflexões, ainda, oferecem visão prospectiva quando, ao concluir, afirma que Brasília “sem desmentir o presente, fornece uma imagem do futuro. É a sua originalidade”. 4

Em razão do conteúdo histórico, é interessante ressaltar as bases do pensamento de Milton Santos sobre a nova Capital. Parte do pressuposto de que a cidade surgiu de uma “vontade criadora” (a do “Plano de Metas” de Juscelino Kubitschek), construída em país subdesenvolvido. Mesmo se inspirando na realidade poeirenta de um “canteiro de obras”, o autor teoriza sobre a definição e a hipótese de trabalho que Brasília enseja, não omitindo o fato de que “cada um dos seus termos (traz) uma contradição aparente ou profunda”. Vontade criadora e subdesenvolvimento estão assim postos:

  Brasília é, ao mesmo tempo, uma capital política e um canteiro de construção. Surgiu como um canteiro de construção e continuou sendo, após a instalação, ali, dos três poderes do Governo brasileiro. Brasília é, também, uma cidade “artificial” e uma grande cidade, uma capital de país subdesenvolvido. 

Cidade “artificial” surgiu de uma vontade criadora que haveria de se manifestar na prévia definição de diversos aspectos materiais e formais. A intenção que presidiu à sua criação é que orientaria aquela vontade criadora. Brasília já nascia com um destino predeterminado: ser “a cabeça do Brasil”, o “cérebro das mais altas decisões nacionais”. Capital administrativa e canteiro de obras, essas duas realidades - a realidade planejada e a realidade condição para a primeira - vão contribuir para lhe dar uma fisionomia, um ritmo de vida, um conteúdo. (...) O subdesenvolvimento comparece como um elemento de oposição,
diante daquela “vontade criadora”, modificando os resultados esperados. Reduz as possibilidades de uma rápida construção da cidade; refletindo-se sobre as atividades principais, explica as demais funções, o quadro, a fisionomia atual, a estrutura e os problemas; e é o responsável pela “dualidade” de Brasília, que tanto a aproxima das demais capitais latino-americanas. Vontade criadora e subdesenvolvimento do país são, pois, os termos que se afrontam na realização efetiva de Brasília. É da sua confrontação que a cidade retira os elementos de sua definição atual”. 5

Desta citação, infere-se o caráter de previsão dado naquilo que pareceu, à época, efêmero, a von-tade criadora de um presidente (JK) e o que perpassa nossa História, o subdesenvolvimento. A pe-netrante visão de Milton Santos,, “antiga” de trinta e dois anos, permanece mais atual do que nun-ca. De um lado, Brasília continua sendo uma cidade a ser definida, pois, na continuidade da "vonta-de criadora”, se construiu a Brasília Um (hoje representada pelo Plano Piloto, onde se assen-tam os “três poderes do Governo brasileiro” e tido como “planejado”) e as Brasílias Dois, Três e Quatro, constituídas tanto por governos autoritários como pelos eleitos nas assim denominadas “cidades-satélites” (que constituem a periferia de Brasília), onde foram “assentados” os operários, como em Taguatinga, em 1958 e os favelados, como em Ceilândia, em 1971 e Samambaia, em 1989.6

Em seu artigo Milton Santos explora, de forma mais aprofundada, a questão de Brasília ter sido construída em país subdesenvolvido e algumas contradições da hipótese subjacente à “vontade criadora”. Santos aponta alguns conflitos a este respeito: alguns autores defendiam a idéia de que a construção da Capital seria uma das soluções para o País perder a condição de subdesenvolvido ou “até mesmo como um dos remédios a esse subdesenvolvimento”, mas reporta a acusação de outros “de ser um agravante dos seus componentes”. Com isto, ressalta a bipolaridade existente sobre Brasília, onde a realidade era de conflito, tal como referido. A seguir, explora “Brasília como solução” aos “famosos desequilíbrios regionais brasileiros” e “aos problemas de distribuição da população” e “uma solução para a inflação galopante que tanto reduz o esforço nacional para vencer o subdesenvolvimento”7 . Assim, Brasília como “solução”, defendida pelos que eram favoráveis à construção da Capital, reduziria os “desequilíbrios regionais” e a inflação, porque a “transferência da sede do Governo viria proporcionar melhor interesse pelas diversas regiões, melhor solução para a distribuição das rendas, enfim, a redução da desigualdade entre regiões de que resultaria inflação”; haveria, ainda, o fato de que “Brasília seria autofinanciável”, citando a argumentação de Peixoto da Silveira, um dos defensores da transferência da Capital. A realidade, de hoje, nos portais do século XXI, nos apresenta um Brasil ainda subdesenvolvido (condição que se agrava pela recessão, desemprego, fome, epidemias etc.) e uma Brasília, que não consegue ser “autofinanciável”, porquanto continua dependente dos repasses federais por não ter fontes de produção para a geração de impostos que atenda a continuada demanda por serviços e bens de uma crescente população urbana (estimada pela CODEPLAN (1995) em 1.816.857 habitantes). 

Uma visão crítica a este respeito já era explicitada por Milton Santos. Assim, apesar dos dados levantados, relativos ao Censo Experimental de 1959, demonstrarem afluxo de operários e de população migrante, interessada nas oportunidades oferecidas pela cidade em construção, Milton Santos levanta dúvidas quanto às afirmações de Peixoto da Silveira sobre ser Brasília uma solução: “Se, a longo termo, Peixoto da Silveira e os que pensam como ele terão razão, só o futuro dirá. Nem se haveria de querer que, em tão pouco tempo, fenômenos dessa complexidade encontrassem pronta resposta. Resta, porém, o fato persistente que é o subdesenvolvimento nacional e suas imediatas implicações sobre a cidade e sua vida”8. Demonstra, por exemplo, que, em 1963, tendo Brasília cerca de 250.000 habitantes, um terço se encontrava no centro, “enquanto os restantes, nas chamadas cidades-satélites”, o que patenteia ter sido excludente, desde os primórdios, o processo de povoamento do Distrito Federal (DF).

Na unidade subseqüente, Milton Santos aborda a construção de Brasília sob a ótica da “vontade criadora”, ressaltando desde os aspectos da “definição da paisagem”, pela arquitetura e pelo plano urbano, descrevendo acuradamente a organização físico-espacial, em termos das construções, do sistema viário, da distribuição das atividades urbanas, sobretudo da educação, do equipamento de saúde e de abastecimento. Nestes tópicos, sintetiza os objetivos que os idealizadores desejavam imprimir à cidade para fazer jús ao fato de que “Brasília já nascera Capital”.

No balanço de sua avaliação sobre Brasília, Milton Santos destaca a dinâmica da construção e o caráter provisório e frágil de algumas funções. Daí ter definido, à época, Brasília como “um organismo incompleto, um organismo heterogêneo e uma capital sem região imediata”9 . Cidade incompleta, pois, havia “insuficiência dos serviços”, como os dados levantados demonstram; “organismo heterogêneo”, porquanto reunia em “bairros de características opostas populações com qualificações também contrastantes”, acentuando que esse constaste era patente entre as imponentes construções do Plano Piloto e os casebres, “típicos de ‘bidonville’ de aglomerações como o Núcleo Bandeirante, também chamado ‘Cidade Livre’” e “uma capital sem região imediata”, constatado na relação de dependência que Brasília possuía para seu abastecimento, sobretudo de Anápolis e Goiânia.

“À guisa de conclusão”, Milton Santos, antecipa com notável segurança alguns pontos nem sempre pacíficos, ao longo da história da Capital. Um destes pontos é o de “acreditar que Brasília constitui um fato irreversível”. Antecipou algo que não pareceu tão claro assim, sobretudo após a derrubada do governo constitucional, em 1964, poucos meses após Milton Santos ter apresentado seu trabalho em Toulouse. Basta exemplificar que, durante os governos militares (Castelo Branco (1964/68), Costa e Silva (1968/1969), Junta de Governo militar (1969)), era persistente a boataria de que a Capital voltaria para o Rio de Janeiro. Todavia, mesmo sob constantes ameaças, a antecipação de que a Capital seria irreversível, dá a Milton Santos o mérito de percepção apropriada da organização da cidade: “sua função administrativa e política surge como geratriz de outras funções e fator de crescimento, mesmo em fases de crise”. E prossegue em sua conclusão:

  “A extensão territorial do país, as grandes distâncias, aconselham a instalação de novas funções, colocando-a, sob esses aspectos, em nível idêntico ao das outras capitais nacio-nais. Caberia, ainda, indagar em que medida o desenvolvimento do país se refletirá sobre a nova Capital. Obteremos, destarte, eliminar o dualismo que hoje marca a fisionomia e a vi-da da cidade? ou será, ele também, um fato irreversível? 

De toda maneira, Brasília é um fenômeno que se antecipa ao futuro do país. Diante do sen-timento do inacabado, dado pela imensidão dos espaços vazios, os candangos têm razão para indagar a si mesmos se não estará a cidade à procura de uma alma. Mas, não se diria que ela não tem já uma personalidade, resultante dos aspectos ultra modernos que lhe atri-buíram por decreto e da fatalidade de haver sido gerada em um país subdesenvolvido”. 10

Estas antecipações, por certo, fazem de Milton Santos um teórico de grande percepção e atualidade. A teorização sobre o urbano em Brasília, é importante que se saliente, faz parte de um conjunto de reflexões sobre “As grandes cidades nos países subdesenvolvidos”, que constitui a primeira parte da obra em referência, e a respeito das “Grandes cidades da América Latina”, componente da segunda parte. Na primeira, ao tratar dos “caracteres gerais” das cidades grandes, Milton Santos, chama a atenção para o fato de que em todas elas “a população mal abrigada constitui uma grande parcela da população global”, formando os “bidonvilles” ou favelas. Fornece dados sobre o volume da população favelada em algumas das grandes cidades, destacando que,

Brasília, cuja fundação oficial foi em 1960, também já conta com as suas... Na moderna Capital brasileira, a presença, em 1959, de 45,3% de população não ativa corresponde, de um certo modo, aos 44,5% de casas rústicas, cuja extinção constitui, hoje, um grave problema para as autoridades”. 11

Mais adiante veremos que, por comparação, Milton Santos lembra as semelhanças urbanas de Brasília com outras cidades brasileiras, sobretudo no que se refere à qualidade do povoamento periférico, nas denominadas “cidades-satélites”. Por isto, pode ser considerado o primeiro geógrafo brasileiro a qualificar a urbanização local desta forma. Se desejarmos atualizar o dado para 1995, percebe-se que, dos 1.816.857 habitantes, são ativos apenas 802.000, ou 44,1%; destes, 126.800 encontravam-se desempregados ou 15,8%12 , um dos índices mais elevados do Brasil. Isto poderá explicar o fato de que, a cada governo, novas favelas se erguem, provocando “erradicação de invasões”, com o que mais e mais “assentamentos semi-urbanizados” se abrem na periferia do DF e para além de seus limites, no Estado de Goiás.13

Pela antecipação de muitos problemas, Milton Santos continua atual. Suas previsões a respeito da cidade em países subdesenvolvidos parecem detectar algo que se agravou: passando por sucessivas crises, “arrochos e achatamentos salariais”, o País ampliou o espaço dos “mal abrigados” urbanos. Com isto, Brasília, hoje, possui dois terços da população urbana vivendo em condições precárias, sobretudo nas “cidades-satélites”, as quais, na realidade são verdadeiras cidades dormitório, com exceção de Taguatinga e Núcleo Bandeirante.

Pode-se constatar, com isto, que Milton Santos, em sua arguta observação do processo de urbanização, antecipou o futuro em mais de três décadas, continuando válidas sua teorização e observações a respeito.

Na consagrada obra Manual de Geografia Urbana14 , Milton Santos dedica inumeráveis passagens a Brasília, tanto sob o ponto de vista teórico como sob exemplificação empírica. Assim, ao tratar da “ação criadora do Estado”, com “cidades novas e organização do território”, refere as “condições gerais da criação” da Capital: “símbolo do urbanismo contemporâneo e das preocupações de todos os construtores da cidade; nenhuma outra criação urbana foi tão planificada, com tanto entusiasmo (...) Brasília alcança uma grandeza arquitetônica que impressiona (...) Brasília se tornou símbolo de um pensamento político (...) Brasília é a cidade de Juscelino Kubitschek. (...) ‘Brasília representa um fator de transfiguração demográfica, social e econômica do país, pela integração efetiva do interior do Brasil na comunidade nacional’”, citando frase do presidente JK. Nos tópicos subseqüentes, Santos descreve a implantação da cidade, em fins da década de 50, das dificuldades havidas, da “criação de uma dupla infra-estrutura: transporte e energia (que, aliás, eram parte do “Plano de Metas” de JK, assim como a “Meta Síntese”: a construção de Brasília); trata, mais adiante, da questão regional e do abastecimento de Brasília com materiais e serviços por cidades dos estados vizinhos, como Goiás e Minas, além de São Paulo e Rio de Janeiro. Aborda o surgimento de cidades satélites: “Nenhuma cidade desse tipo foi prevista no plano-piloto; rapidamente uma apareceu, chamou-se Cidade Livre, por oposição à cidade planificada e pela vontade de liberdade de seus habitantes. É uma cidade provisória de pioneiros”. (...) “Cidade fervilhante, inconfortável, com barracas, casas e oficinas construídas com a mais espantosa gama de materiais provisórios, a cidade livre, entretanto, não deveria ser confundida com uma favela e sim como um acampamento de pioneiros, uma efêmera cidade de fronteira como outrora (...)”. No aspecto transitório da então Cidade Livre (hoje Núcleo Bandeirante), as previsões de sua desconstituição não ocorreu, tal como arremata Milton Santos (1981, 102) “Mas foi o contrário o que se deu”, deixando subjacente a luta, no início da década de 60, por parte dos comerciantes e moradores do Núcleo para sua fixação, tal como está em os Construtores de Brasília, de Bicalho de Souza.15

Abordando a noção de funções urbanas em meio subdesenvolvido, ressalta que certas “funções hegemônicas” ou “função líder, motora”, com papel específico, podem ceder lugar a outras. Indaga: “Por quanto tempo ainda cidades administrativas de criação recente, como Brasília, continuarão a apresentar caracteres análogos?” Tratava das cidades vulneráveis aos riscos do crescimento, exemplificando com Manaus, onde a deterioração do ciclo da borracha levou ao desaparecimento da função hegemônica. No caso de Brasília, Santos salienta que uma “reconversão, sinal de vitalidade urbana”, dependeria “da velocidade de diversificação das atividades e da integração da cidade na região e no país”16. Neste aspecto, Milton Santos acerta sua previsão, pois a economia, alimentada pela função administrativa, atraiu investimento do setor privado, incrementando sobretudo os setores terciário e quaternário, sendo fatores decisivos para alimentar o mercado de trabalho, os serviços e o consumo na Capital federal. Em outra obra, ao analisar a urbanização latino-americana, Milton Santos, tipifica as cidades: “tipo colonial; neotécnico e misto”, isto quanto à preocupação com o ordenamento e com plano urbano. Quanto a estes aspectos, distingue a “série hispano-americana e a série brasileira”. A série brasileira não se caracterizaria por planos prévios, tal como o “crescimento tumultuado e irregular” de Salvador. Distingue no “neotécnico”: “a) séries originais não planejadas; b) séries originais planejadas”, nestas incluí cidades “criadas, das quais o melhor exemplo é Brasília, mas também, Ciudad Guayana e outras”. Prossegue suas considerações sobre a gênese das cidades, acrescentando “a relativa demora da América Latina em receber os influxos da civilização industrial” e os elementos de ordem histórica que nos fazem compreender as especificidades da urbanização em nosso Continente.17

Em uma outra abordagem sobre Brasília, contida na obra O Espaço do Cidadão, Milton Santos trata dos “pactos territoriais”, nos quais entram a “modernização capitalista”, a “construção de Brasília”, etc.18 Afirma que

“A construção de Brasília é a ocasião para que aconteça um novo pacto territorial.
Não se dirá que a obra monumental animada pela vontade férrea de Juscelino Kubitschek tenha sido encomendada para, deliberadamente, obter esse fim. Ela se inscreve em um movimento bem mais amplo, o da modernização de um país, cujo território devia se equipar de um modo adequado à enorme mudança programada.
(...) Brasília justifica os grandes investimentos em infra-estrutura, que encurtam as 
atividades mais famintas de espaço.

Em anos recentes, Milton Santos volta a dedicar suas reflexões sobre as cidades brasileiras, tendo em mente os complexos fenômenos desenvolvidos ao longo do processo: “a urbanização pretérita”, vis-a-vis a “nova urbanização” e evolução recente. Assim, “o novo urbano chega antes da modernização rural (...) da modernização do País”. Ademais, analisando a “diversidade regional”, trata do fato de que o “Centro-Oeste (e, mesmo a Amazônia, apresenta-se como extremamente receptivo aos novos fenômenos da urbanização (...)”, como o que ocorre com a recente “redescoberta do cerrado (...)”, verificando-se “uma nova etapa da urbanização, graças, também, ao equipamento moderno do País e à construção de Brasília”, arrolados entre as condições gerais do fenômeno: “graças às novas relações espaço/tempo, cidades médias relativamente espaçadas (...) se desenvolvem rapidamente, e, reforçada, Goiânia pode pretender à condição metropolitana, apesar da proximidade de Brasília”19. No capítulo subseqüente, considera as “cidades milionárias”, no bojo da “urbanização concentrada e metropolização”, incluindo Brasília como uma cidade de porte metropolitano que pode ser tipificada desta forma, pois “o fenômeno da metropolização vai muito além da denominação legal” (...), podendo-se acrescentar outras “‘regiões urbanas’, que mereceriam idêntica nomenclatura. A primeira delas é Brasília, com suas cidades satélites (...)20. Mais adiante, em seu importante trabalho de prospeção, Santos analisa “as tendências da urbanização brasileira no fim do século XX”. Avalia que “(...) quanto maiores e mais populosas, as cidades são capazes de abrigar uma gama mais extensa de atividades e de conter uma lista maior de profissões, estabelecendo, deste modo, um tecido de inter-relações mais eficaz sob o ponto de vista econômico. Esse salto qualitativo não invalida o fato de que São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília mantenham posição de comando sobre o território nacional, com uma espécie de divisão do trabalho metropolitano que permite distinguir claramente entre as três e entre elas as metrópoles regionais”.21

“Sob certos aspectos, Rio de Janeiro e Brasília podem, também, ser consideradas cidades mundiais, sobretudo a primeira. Todavia, é São Paulo que merece com maior razão esse adjetivo, após haver concorrido vantajosamente com o Rio de Janeiro, neste meio século, para obter situação de primazia hoje incontestável (...)”. Assim avalia Milton Santos, mais uma vez, o papel das três “cidades milionárias”, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, ao tratar São Paulo como a “metrópole internacional do Terceiro Mundo”22. Entre as características para classificar a metrópole com mundial, Santos destaca o comando financeiro (sobretudo o de bancos, financeiras e corretoras), os setores de comunicações e publicidade e a indústria cultural e produção científica. No comando financeiro, a existência de bancos, corretores e financeiras em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, as colocam em evidência no plano nacional. Salienta que “Brasília, a Capital federal, também registra avanços no que se refere a bancos comerciais e caixas econômicas, graças à expansão de instituições públicas como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, transferidos do Rio de Janeiro, capital federal até 1960. (...) O Rio de Janeiro perde, assim, uma parcela considerável de sua importância como centro financeiro, em parte pela transferência da Capital federal para Brasília, em parte pela irresistível ascensão de São Paulo (...)23 . Ao se referir à “nova divisão metropolitana do trabalho”, Milton Santos avalia que “em Brasília aparecem os elementos de comando correspondente à atualidade do presente, mas a base política é relativamente incompleta. (...) Há, na verdade, uma nova divisão metropolitana do trabalho, que não mais interessa exclusivamente ao Sudeste, pois Brasília se junta a São Paulo e ao Rio de Janeiro no preenchimento de funções diretoras em escala nacional. O Rio de Janeiro é o grande perdedor, uma vez que, progressivamente, abandonam-no as tarefas de centro de decisões políticas em favor de Brasília, e as de centro de atividades e decisões econômicas em favor de São Paulo (...), enquanto Brasília adquire peso econômico com a instalação de bancos e outras empresas. Neste particular, Brasília repete, à sua maneira, o fenômeno atualmente vivido por muitas antigas e recentes metrópoles regionais brasileiras (...). Instância econômica e instância política são, ao mesmo tempo, fator de regulação e de comando da economia, da sociedade do território, e isto explica o conteúdo dessa divisão trabalho. Onde é a pura política que decide, a proeminência de Brasília e praticamente incontestável, onde o fator de controle é a pura economia, a primazia hierárquica cabe, na maioria dos casos, a São Paulo. O que resta ao Rio de Janeiro, em ambos os casos, é residual”, conclui Milton Santos.24

Por certo, na vasta obra de Milton Santos há elementos que referenciam Brasília. Todavia, como enfatizamos nosso resgate não é exaustivo por limitações de espaço. Contudo, faça-se justiça, Milton Santos pode balizar conceitos, teorizações e conhecimentos concretos que o fazem referência obrigatória em qualquer trabalho sobre temáticas urbano-regionais em nosso contexto e no exterior.


  1. Trabalho apresentado no Encontro Internacional O MUNDO DO CIDADÃO - UM CIDADÃO DO MUNDO. USP, 13 a 16 de outubro de 1996 e publicado em Maria Adélia Aparecida de Souza (org.). O MUNDO DO CIDADÃO – UM CIDADÃO DO MUNDO. São Paulo, Hucitec, 1996, pp. 149-160
  2. SANTOS, Milton  (1965). A Cidade nos Países Subdesenvolvidos. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira.
  3. Idem, pp. 51 a 68.
  4. Idem, p. 68.
  5. Idem, pp. 54  e 55.
  6. Sobre urbanização e exclusão em Brasília ver a Coleção Brasília, Editora UnB, em especial as coletâneas A Conquista da Cidade, 1991 e Brasília: Moradia e Exclusão, 1996.
  7. SANTOS, Milton (1965) A Cidade nos...  pp. 56 a 59.
  8. Idem, p. 58.
  9. Idem, p. 65.
  10. Candango, explica à p. 58, “é o apelido com que, a princípio, foram conhecidos os construtores de Brasília e que, depois, passou a qualificar todos os habitantes da cidade”. A conclusão, referida, encontra à p. 68 da op. cit.
  11. Ver características das grandes cidades, op. cit. p. 3 a 14. Citação à p. 12.
  12. Dados da CODEPLAN (1995). Indicadores Conjunturais, Ano 1, nº 2, pp. 19 e 24.
  13. Sobre periferização ver Paviani, Aldo (1989) Brasília, A Metrópole em Crise. Brasília, Ed. UnB e Paviani, Aldo  “A construção injusta do espaço urbano”  In Paviani, Aldo (org.) (1991). A Conquista da Cidade. Brasília, Ed. UnB., pp. 115 a 142.
  14. Santos, Milton (1981). Manual de Geografia Urbana. São Paulo, Hucitec.
  15. Sousa, Nair Heloísa Bicalho de (1983). Construtores de Brasília. Estudo de Operários e sua Participação Política  Petrópolis, Ed. Vozes.
  16. Santos, Milton  (1981) Manual de Geografia Urbana, São Paulo, HUCITEC, p. 62, 89 e 101.
  17. Santos, Milton (1982) Ensaios sobre Urbanização Latino-Americana. São Paulo, HUCITEC. p.34.
  18. Santos, Milton (1987). O Espaço do Cidadão. São Paulo, NOBEL, p. 101 a  106.
  19. Santos, Milton (1993). A Urbanização Brasileira, São Paulo, HUCITEC,  p. 62 e 75.
  20. Sobre o caráter metropolitano de Brasília ver Paviani, A. (1985) “A metrópole terciária” In Paviani, A. (org.) Brasília, Ideologia e Realidade. Espaço Urbano em Questão. São Paulo, Ed. projeto/CNPq, p. 57 e, do mesmo  autor (1989) Brasília, A Metrópole em Crise. Ensaios sobre Urbanização.Brasília, Ed. UnB.
  21. Santos, Milton (1993) A Urbanização Brasileira, op. cit.. pp. 121 e 122.
  22. Santos, Milton (1994) Por uma Economia Política da Cidade. São Paulo, HUCITEC, p. 17.
  23. Idem, p. 28.
  24. Idem, pp. 44 e 45.

Imprimir   Email